terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Do amor que nos redime

Cecília fez, em setembro, cinco anos. Ela é como toda criança de cinco anos: transforma o mundo em um lugar mágico, melhor e mais colorido. E transborda amor, sempre. Toda noite eu faço o "mamá"  dela e como faço desde que introduzi a mamadeira, fervi e fui retirar da panela, pequei o fundo do objeto com a mão mesmo, por puro costume. E ela, do outro lado da cozinha, olhinhos aflitos:
- Mamãe, pega um garfo para tirar o resto. Não quero que você queime o seus dedinhos. Dói muito.
Me senti como sempre me sinto quando ela me diz essas coisas: com um aperto no coração de tanto amor. Deixei tudo e a segurei no colo bem apertado. Eu nunca imaginei a maternidade para mim. Não sou o tipo babão de mãe, nem curto muito para ser sincera, entretanto, é inegável que o amor que nos une a um filho é algo absolutamente pleno: nos dias mais turbulentos, nas grandes canseiras, no descompasso do mundo, tudo o que eu quero é chegar em casa e sentir o cheirinho da Cecília. Ele resume, de forma precária, o amor: saber que há alguém no mundo que não vai se importar com nada além de você, mesmo com a ilusão que sempre alimentei de conhecê-la profundamente, o que acontece é justamente o contrário: ela me conhece e  me ama sem reservas. Fiz escolhas muito ruins na minha história e que me ensinaram valiosas lições, fiz também outras que me deram algum conforto, escolher ficar sempre por perto da Cecília foi a mais acertada de todas. Não por ela, por mim. Eu precisava de amor incondicional e encontrei. Para fechar esse escrito, enquanto ela estava em meu colo, ela disse baixinho:
- Tudo bem mamãe, se você queimar o seu dedinho, eu cuido de você: coloco gelinho e remédio. Ela não sabe ainda, mas todos os dias ela coloca o remédio. Todos os dias.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Dos rios que margeiam nossa vida.

A saudade é um rio que atravessa nossa vida. Digo rio, pois, não há para mim, melhor metáfora. E a metáfora como bem sabemos é um transbordamento de sentidos. Por isso, o rio: ele sempre margeia a terra firme, sem de fato ocupar-se de parar, sempre corre, mas leva sempre, sempre lava, molha, marca. Quem cresce com rios em sua infância os guarda para sempre - como um singular Tejo - desdobrado em acalantadas memórias de gritarias, risadas e, no meu caso, amor.  Eu tenho um rio: o Laranjeiras. Os que de mim sabem, conhecem minha relação com aquelas longínquas águas. Nelas cabem todo o meu mistério: a casa  da bruxa, o balanço que cortava o rio, as muitas horas dentro da água fria cortada pelos filetes de sol que atravessavam a vegetação, os pés de ariticuns até chegar às águas e, em meu último contato com o Laranjeiras, a explicação sobre os seixos.  Sempre fui de terceiras margens. Sempre alonguei-me em mim e nos rios para que pudesse arranjar em palavras tudo o que sentiae virar rio é virar coisa que não carece de explicação.


segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Chuva

Escrevo.É meu trabalho em tempo integral nos últimos dois anos. Na janela a chuva cai torrencialmente. Sempre tive uma intimidade ancestral com a chuva: antes, quando menina, medo, agora, calma. Volto-me para meu pequeno caos interior, lembro-me lentamente de assuntos e pessoas, divago enquanto ouço retumbar nos objetos do quintal, as grossas gotas de chuva. Se tivesse lágrimas choraria. Mas não tenho. O que há é esse silêncio de casa vazia. Leio um autor russo que fala da significação e da vida. Quais os significados da chuva? Por que algumas palavras brotam em meu interior com tanta força? Qual a história delas? Por que ando eu a fazer tantas perguntas? Deve ser a chuva. Olho novamente para a janela, o escuro do temporal ainda toma conta da manhã. Escrevo. É meu trabalho e há nisso tanta solidão.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Ônibus

A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento. Marquei a página de O livro do riso e do esquecimento, do Kundera e concentrei-me na paisagem que corria pela janela do ônibus. Faz um tempo que ando de ônibus com livros em minhas bolsas. Lê-los é fugir um pouco do sufocamento das pessoas que empoleiram-se nos coletivos, daqueles rostos sofridos e cheios de desesperança. Olho para os morros que margeiam a cidade: a luminosidade solar me faz lembrar o tempo em que morava perto do mar. Queria o mar, não por ter com ele relação idílica, apenas para ver sumir naquela imensidão horizontal todas as minhas pequenas-burguesas angústias. Sinto-me contista nos ônibus. As palavras que estão tão técnicas em  meu dia-a-dia, de repente ganham outro contorno e vão tecendo outras de mim. Vejo-me desfilar em diálogos mudos com pessoas que não são. Sou bruscamente retirada de minhas profundezas por um comentário do passageiro ao meu  lado. Foi para mim?  Para si próprio? Importa? A sineta da parada, o empurra-empurra, sinto-me exausta e volto-me para Kundera. Sobrou o chapéu de Clementis. Todas as lembranças que temos e que nos são inadequadas cabem na metáfora do chapéu de Clementis. Todo o dia de ontem. Todas as respostas mentirosas. Todo o amor foi tirado da fotografia, sobrou apenas o chapéu. E eu luto contra ele também. No ônibus. Sendo outra mulher. Uma versão melhor, menos iludida.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Das roupas que ensinamos nossas filhas a usar

Eu não sei bem se estou no caminho mais adequado da maternidade. Aliás, a dúvida é sempre a fiel companheira das mães, mas uso esse espaço para relatar para mim mesma em grande parte, as experiências da maternidade. Estamos na fase: Cecília escolhe a roupa que quer vestir. Aliás, vou logo dizendo que acho linda aquelas menininhas de vestidos com as tiaras ornando, acho mesmo, porém, Cecília não é uma dessas meninas. No começo do processo eu queria que ela usasse as roupas que eu achava mais legais, inútil, tudo virava uma grande confusão, briga e choreiro. Ela não gosta de amarrar cabelo, até gosta, mas só quando quer. E as roupas são assim. Até os 3 anos ela não usou, basicamente, nenhuma saia. Odiava. Agora ama e tal ponto de querer, em temperatura beirando zero grau, ir de saia para a escola. Mas não é só a saia, ela gosta de colocar peças sobre peças: bermuda sobre calça, saia sobre calça jeans e tudo o mais colorido possível: outro dia, foi com uma saia verde super rodada, uma calça legging bordo, meia cinza, sapato amarelo e uma camiseta branca com um bolero preto. Assim mesmo, coloridíssima. Passei na rua por algumas pessoas que a olhavam e o primeiro pensamento foi: deveria ter ajudado com a roupa hoje, mas logo em seguida eu pensei: por qual motivo? Ela ia linda, confiante e sorridente. Não se sentia constrangida, sentia-se poderosa com a escolha que havia feito. E vendo a atitude dela, refleti sobre a minha própria insegurança e ponderei que ela, muito melhor do que eu, vai olhar para o mundo como uma mulher que não se permite medir pela roupa. Ah! O que se pode aprender com as crianças.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Maria Evilma

Maria E. Sim é uma referência à personagem Bela B. do livro Hilda Furacão, de Roberto Drummond. Poderia narrar toda a história de nosso encontro nesse mundo, mas isso seria, por certo, muito pouco proveitoso, pois as palavras não dariam conta. Então fiz esse escrito, pois vi a foto de Maria E. careca, assim como no livro do Meninos Pelados de Graciliano Ramos que Cecília tanto gosta. Achei que fosse coincidência, mas é não. O amor tem desses melindres: um dia lá, outro aqui. E para percorrer tudo: a amizade e o querer bem de sempre.

Sempre foi de mato.
Mostrei o poema do Manoel de Barros e virou árvore.
palavras e rios ficam melhores com os que são do mato.
Tem gosto para estrepolias, Coisas de causar arrepio em gente branda feito eu, mas de braço dado atravessando a rua, a coragem era dividida. Sempre foi. Até a porta do ônibus e com o assunto longo feito a colcha da Penélope.
Arquiteta casas: de passarinhos, de gente, de cachorros. Sempre com uma cobertura de flor para todos. E para que mais serviria uma casa se não tivesse flores?
E quem escreve o mundo pela luta, escreve melhor e com mais poesia, para que o riso farfalhe como as asas da borboleta .
Sempre foi de mato, de palavra e de amor.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Os caminhos de fazer crescer gente

Sou mãe. É a única coisa permanente em minha inteira existência. Mas maternar é de complexidade ilimitada, pois além do mundo, ainda lidamos com nossas próprias expectativas e fantasmas. Pois bem. Cecília fará cinco anos e as perguntas que ouço são: ela já está aprendendo escrever? ela já está em alguma atividade extracurricular? Ela....? Eu não sei ao certo o que as pessoas esperam de uma criança, aos cinco anos, eu espero o seguinte: que ela brinque, cante e dance, que ela se sinta amada, que goste dos bichos, que se suje, que imagine histórias, isso a Cecília sempre fez. Eu não  tenho angústias em relação ao futuro dela. Ela é feliz e ela tem um tempo próprio para resolver as suas questões: saiu da fralda quando quis e nunca mais voltou, nem à noite. Saiu da minha cama quando quis, volta quando tem medo de dormir sozinha. Vai em uma escola em que eles brincam o dia todo. Eu já disse em outros escritos: ela não será presidenta (ou será), eu não tenho a pretensão de que ela cresça e cuide de mim um dia. Eu quero que ela cresça e seja feliz, resolvida, do mundo e livre. Ela não lê e não escreve, mas canta, dança, borda, faz colares. A escrita é uma das muitas formas de verbalizar o mundo. Ela tem tantas e tão maravilhosas que escrever, quando chegar o tempo dela, será mais uma. E é essa é uma das muitas coisas que aprendi com ela. Ela tem o tempo dela e não é igual ao meu. O mundo para ela não tem nenhuma das preocupações que tem para mim, é um grande quintal e é assim que tem que ser. Eu quero para ela a humanidade que vem da experiência, do vivido, do sentido e isso ocorre antes das palavras, aliás, ela só terá palavras se tiver o mundo.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

O ruído do mundo

O rangido do mundo
A maquinaria da vida
Eu respiro como quem volta à tona
Como quem quer sentir o ar
O rangido dos carros, carrinhos, ônibus, pessoas,
Uma massa de carne e funilaria se mistura na rua
Eu olho o céu
Para sentir o sol
Para ver passar o passarinho. Sem ouvi-lo
A pressa do dinheiro
Do tempo
Da vida
Que se esgota na angústia do dia que se vai
Para recomeçar
E acabar
E recomeçar
Como o relógio ponto
Eu paro como quem subverte o mundo
Para ouvir a música
Para descompensar a vota dos ponteiros
Eu paro mesmo, para as palavras da poesia

domingo, 11 de setembro de 2016

Da felicidade de um dia de sol

O sol brilha no quintal. Capino a horta, ralho com a Cecília, os morangos estão ficando vermelhos. Então, entrego-me à frágil sensação da felicidade, aquele instante em que tudo parece no lugar. Sou de entremeios, quase nunca percebo essa alegria singela em não ser ninguém: em afundar-me no cotidiano sem esperar grandes acontecimentos. Talvez seja uma fuga. Talvez medo. Mas já passei por tempestades suficientes para saber que essa calmaria pode ser só calmaria. Nada que venha antes, nada que desperte a ansiedade. Não há primeiro a felicidade para logo em seguida sermos castigadas pela infelicidade do não merecimento. Somos felizes assim, aos poucos. Por isso não me iludo: planto a horta, escrevo, planto o jardim, cuido da Cecília, escrevo. A pouca glória da rotina me é um abrigo. Canso-me facilmente das atribulações dos sujeitos empertigados, daqueles que estão sempre atrás de uma agitação, como se a calma testemunhasse alguma forma de derrota. Pois se assim é, estou eu então, derrotada. Como meu chocolate, sem ocupar-me do papel de estanho, por isso não deito tudo no chão. Já estou lá. Sinto a grama e não sou ninguém.

sábado, 10 de setembro de 2016

A mulher desiludida

Não é meu o título. É da Simone Beauvoir. Um livro com três contos sobre mulheres distintas. Voltando do centro, quase uma hora de ônibus, leio o livro e penso qual delas eu seria. Voltava da terapia e me sentia desbotada como se todas aquelas mulheres me habitassem. Não faço pergunta porque não quero ouvir as respostas. O enunciado rompeu minha frágil redoma e desejei voltar ao tempo e fazer as perguntas. Todas elas. Você me ama? Por que eu não posso ser assim? Posso ficar? Por que você não me escolheu? Você gostou do poema? Por que você me telefonou? Posso ir embora agora? Você me ama? Senti-me, então, esvaziada, como se as perguntas todas fossem as respostas. Senti-me mesmo triste por ter perdido minhas perguntas preciosas e porque as respostas não me importavam mais. Estava desiludida. O gélido fim da tarde, a chuva que insistia em escorrer, a lama grudada em meus sapatos, as pontas das roupas molhadas, as pessoas sisudas que entravam e saiam do ônibus ansiando não precisar se mexer, contornavam minha desilusão. Adornavam a quente sensação de deixar partir tantos anos de cuidados com as feridas. Se elas estavam fechadas? Qual a importância? Mesmo a mágoa é um sentimento que não passa de uma desilusão. E me senti calma. Apenas queria manter vazia minhas entranhas. Olhava a chuva, via o dia afundar-se novamente, um atropelo de angustias brotavam como mofos. Isso. Muita chuva e os mofos brotam aqui e ali. Manchando paredes. Eu estava manchada.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

felicidade

Ando feliz de uns tempos para cá. Aprendi com a Gesulada. Não é um polianismo, mas é. Ontem voltando para casa depois dois dias inteiros fora dela, sem acordar e ver a Cecília, escutei a vozinha dela perguntando se tudo estava certo. Cinco anos. Parecia mais, uma emoção tomou conta de mim, tive que conter as lágrimas de felicidade quando ela disse que me amava e que me esperaria acordada para um abraço. Ela não consegue eu sei, dorme cedo. Mas ela queria. Sabia que eu queria sentir aquele quentinho que vem do amor que ela sente. Isso é a felicidade. Não há outro nome para isso. E ao invés de me concentrar em todos as coisas do mundo, preferi me concentrar no amor da Cecília. Tudo parecia tão certo e não questionei mais nada. Só agradeci.

domingo, 24 de julho de 2016

Ironia

Eu dirigindo com a Cecília na cadeirinha:
- Gosto tanto de quem não usa a seta....
- Você gosta mamãe? Você disse que não gostava
Explico a ironia. Digo para ela que não gosto, que eu falei com a entonação enfadonha. Linguística e efeitos de sentido...
Dias depois. Recuperando-se de uma inflamação de garganta, quase nos últimos dias de um antibiótico horroroso:
- Nossa mamãe, esse remédio está maravilhosamente gostoso.
Estranho e confirmo se dei o remédio certo.
- Que coisa né filha? Depois de tanto tempo ficar gostoso é inédito.
- Ai mamãe. É ironia. Não percebeu meu tom de voz?
Fiquei pasma. E muda. O que eu poderia dizer num momento desse?


sábado, 16 de julho de 2016

Teus olhos



Teus olhos
mirando o capim deitado pelo vento
Que falta me fazem teus olhos quentes
Acompanhando teus sussurros a correr meus interiores
Falta-me a poesia
Fico inacabada para palavras.
Posso esperá-lo?
E recolher-te no fim do dia em abraços lânguidos 
Colar a sua boca na minha
E derreter-me sob teus olhos?
Sus ojos
Eu te escrevo para não me faltar o mundo.

sábado, 18 de junho de 2016

Nome para chamar

Para nomear o amor:
Risadona da Cecília
cheiro de chuva em terra seca
um dia de sol no inverno
a escola de quando se é pequeno.
nossos rios da infância.
As coisas me nomeiam pelo lado de fora:
os cheiros daqueles que amamos
As árvores olhadas de baixo
Geada branqueando a grama
A mão que aperta  no abraço
E tudo vai ganhando nome e vai virando palavra para poesia e poemas na vida
Há tanta beleza em tentar nomear o mundo
E há tanto mundo
Antes, quando sofria de pertencimento, me aborrecia por não conseguir nominar o indizível...
Agora que também sou rio, corro com o mundo e tudo está em mim.




terça-feira, 14 de junho de 2016

Eu leio para encontrar nos poemas, nas palavras, alguma coisa faltante em mim. Não é fraqueza. Os meus tempos foram feitos de pedra, de asperezas, do silêncio daquilo que ficou por dizer. Então, espio nas palavras o mundo. Não há mansidão em mim. Tormento como quem deseja o impossível, como quem espera o beijo, como quem sabe que para o sentimento latente não há abrandamento. Assim pulsam os dias diante dos meus olhos. Pulsam as palavras e eu tento prendê-las, capturá-las para me fazer nominável. Eu quero mesmo a palavra para dizer da saudade. Para fazer presente em mim os mundos ausentes. Ah, mas contraditória que sou, gostaria mesmo de não precisar de palavra alguma e caber na imensidão do abraço que agora me falta. Mirar teus olhos de lua e ver tudo explicado.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Cecilices

Ilusão
- Mamãe o que é uma ilusão?
- É uma coisa que você pensa que é mais não é.
- Hum.
Passa um tempo
- Mamãe eu pensei que eu vi a Lisbela, mas não vi. Isso é uma ilusão?

Linguística
Na volta da escola,passamos na padaria. Ela escolhe uma barra de cereal nunca antes provada. Gosta demais e vem o resto do caminho dizendo o quanto gostou.
- Mamãe amanhã podemos passar de novo lá na padaria e comprar outra barra?
- Ahã
- Eu vou roubar uma barra para mim.
- Então,
- Mamãe, eu falo roubar só para fazer a frase ficar mais legal.
Explico sentido figurado, efeito de sentido, gasto minhas aulas de linguística...
- Mamãe eu sei que não posso roubar nada, mas fica mais irado.

sábado, 21 de maio de 2016

Da passagem do tempo

Minha filha Cecília é uma criança temporal. Sempre teve uma tendência para identificar o tempo e sua passagem, tanto que não se confundiu ao usar os verbos em seus devidos tempos. Desde de pequena usa o pretérito para o passado, o presente para o presente e o futuro para a nebulosa que não sabemos.
Hoje, ela se deu conta do envelhecimento que traz a passagem do tempo. Estava eu a colocá-la para dormir e enquanto escovava meus dentes escutei que ela chorava. Corri para acudir e perguntei o que havia acontecido. Cecília me olhou com olhinhos tristes e magoados:
- Eu vou sentir saudades de você quando eu crescer.
Um pequeno silêncio se instaurou. Segurei o choro, pois compreendi que sentirá saudades desses momentos únicos que vivemos juntas nessa idade maravilhosa que é a de quatro anos, que sentirá saudades de dormir enroscada comigo, de ser o centro do meu universo e não haver nada mais com que se preocupar além do fato de ser criança e ter pai e mãe para amá-la. Ela percebeu, mesmo que por um átimo de tempo, que envelhecerá e que isso significa que eu não serei mais a mamãe, serei a mãe.
Então fiz o que se pode fazer, coloquei ela em meu colo, a embalei como quando ela era bebe, disse que ela ainda moraria comigo por muitos anos e que, se ela quisesse, a vida toda. Que eu morei na casa da avó dela até bem tarde. Que ela não precisava se preocupar. Se acalmou. Eu não. Fiquei inquieta pensando o que a fez pensar isso. Como, tão pequeninha, pôde notar que o mundo encaminha a gente e, às vezes, ficamos sim longe de quem amamos e sentimos tantas saudades que nos parecem dores físicas. Inquieta em perceber que minha filha compreendeu o que é viver um momento tão maravilhoso  a ponto de saber que sentiremos saudades dele por toda a nossa vida.

quinta-feira, 3 de março de 2016

Longe é um lugar que não existe

Recebi há muitos anos atrás como presente de aniversário, o livro Longe é um lugar que não existe, do Richard Bach (Fernando Capelo Gaivota). Li e reli naquele período e não entendi, até que hoje, procurando o Roland Barthes, encontrei o livro e com muito atraso compreendi o gesto e o amor atrás das palavras escritas... E isso me fez pensar: e quando as palavras não são ditas, mas significam? E se nós a compreendemos assim, tão longe daquele instante em que foram enunciadas? O que fazemos com o sentimento que em nós é despertado? Ignoramos? Trancamos novamente o livro e as coisas ditas e não tidas dentro da estante? Eu como sou ensimesmada (ou enmimesmada) e guardo esses acontecimentos que vão bordando a minha história, assim, quando acontece tal tipo de sortilégio, uma emoção desconhecida e avassaladora cresce no peito. Talvez saudade, talvez o próprio amor de antes. E uma vontade cálida de um abraço antigo, de uma conversa atordoa o dia. Não há nisso arrependimento, desgosto, há uma saudade genuína - igual a que temos de quando somos crianças - há um apego que fora esquecido e se derrama bruscamente como as tormentas de verão. E descubro atônita que as palavras não ditas habitam, em forma de silêncios, saudades e suspiros a minha existência. Não chega a ser tristeza, apenas aquele olhar oblíquo para o dia, para os morros que se perdem no horizonte, fazendo as palavras brotarem, como agora.


quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Campo de Vaga-lumes

Há coisas na vida que são para sempre. Uma delas são os vaga-lumes. Quando éramos pequenos, numa passagem que me lembro pouco da minha vida, a vó Dolores mudou-se para perto da Lagoa dos Sapos, lá em Luiziana. A casa dela seria reformada e ela precisou ficar morando nessa por alguns meses. Havia uma pastagem no fundo da casa e à noitinha enchia de vaga-lumes. Eu e o meu irmão ficávamos até escurecer tentando pegá-los. Era lindo. Hoje, eu e a Cecília dos deparamos, na campina da universidade, com um campo de vaga-lumes. Parecia um céu no chão. Um céu de estrelas que se mexiam. E a Cecília observou: mamãe as estão pulando na grama!!! E saímos catar estrelas. Quando pegávamos o vaga-lume ela olhava impressionada a luzinha piscando e depois soltava. E ria. Igual a mim e ao meu irmão e eu pensei que a infância é assim para gente: um céu de estrelas pulando no chão.



segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Para dias cinzas

O violão
A manhã cinza
A saudade
Esquecidas as palavras de trabalho
Caberia você, ao menos, em minha poesia
Caberia o desejo no silêncio infinito que  fizeste?
Eu e minha destreza para pertencimentos
Digo-lhe de amor, assim, atravessado
Como quem desconhece os mistérios
- ou neles perdida está -
Digo-lhe de falta como quem sente festejar por dentro
Algum sentimento indolente e obscuro
Que agiganta em mim a tua urgência.
A manhã cinza
O violão
As palavras não te alcançam
Mas o que mais poderia eu fazer?


sábado, 6 de fevereiro de 2016

Das coisas que guardamos dos caminhos

Em O Amor no Tempo do Cólera o amor entre Florentino Ariza e Fermina Daza é algo da ordem do inusitado. E lá pelas tantas na narrativa, Florentino pergunta algo como 'o que fazemos com o amor que sentimos e não podemos sentir, dizer?' A pergunta não é exatamente essa, mas o que fazemos? O que fazemos com a coleção de sentimentos que vamos juntando ao longo da vida? Eu, como bem disse em outros escritos, sou das que sente e guardam, como se o sentimento fosse um velho conhecido, alguém que encontro de quando em quando e a quem cumprimento respeitosamente. Sempre tive dessas estranhezas: carregar relicários de pequenas lembranças de lugares, pessoas, cheiros, para sentir saudades. Antes, quando ainda era afoita para entendimentos, não compreendia bem, achava melhor não pensar sobre esses descaminhos. Agora, mais velha, acho mesmo graça em relembrar e em sentir saudade. É um exílio. Na criancice me alongava para o quintal, sempre fui de silêncios para as coisas não compreendidas, agora me alongo para esses lugares que me habitam. Pensar isso, me faz lembrar do sítio. Na roça a gente tem os morros onde os ventos fazem dançar o capim. Custava para me cansar de ver a dança. E em dias como o de hoje, quando há no  cheiro da tarde qualquer coisa de conhecido, me lembro da sensação. Talvez seja a razão de guardar: a dança do capim, o cheiro da velhice da minha vó, da mala de motorista do pai... Talvez sejam as coisas que guardamos do caminho. Quem sabe isso e o amor que sentimos e que não podemos mais dizer....

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Conversas de Cecília e os quatro filhotinhos da Tereza

Temos vários gatos  a Lisbela, a gata branca que o Sr. Neide nos deu, no primeiro mês que viemos morar na nossa casa; o Doce-de-Leite (o nome já diz a cor) que era do antigo dono, mas como teve comidinha farta desde o primeiro dia não se incomodou de ficar conosco. A Rajada - que não é nossa, mas vem de vez em quando comer, por isso tem nome. O Bom-bom que é da vizinha e tem uma grande calda peludona, também come aqui, às vezes. E, por fim, a Tereza. Uma gata malhada que não era nossa, mas se estabeleceu. Miona, teve quatro filhotinhos que ocupam grande parte do dia da Cecília. A Cecília é a responsável pela comidinha nos potinhos e pela água. Faz isso todas as manhãs, ou quando eles se juntam na porta da casa miando em coro. Ela conversa, distribui afagos, ralha quando um tenta pegar o potinho do outro. E pelo dia ela vai trazendo historinhas...

Mamãe, o filhotinho da Tereza me mordeu. Mas eu não liguei, ele ainda não tem dentinho forte.
Tereza (a gata mãe dos filhotinhos) eu vou pegar seu filhotinho só um pouquinho para dar carinho. Traz para casa, põe leite no pires, travesseirinho por perto, canta para ninar. Resolve devolvê-lo para a mãe dele: Tereza! Vai aqui um presentinho muito especial!
Depois de uma tarde quase inteira entre os filhotinhos, no galpão no fundo de casa, ela volta: mamãe, aqueles montinhos de pelos são tão fofinhos. Se pudesse trazia todos para dormir na minha cama.
Filha parece que eles estão com pulgas. Não tem problema mamãe, é só tirar assim: passa um pano pelo corpo.
Os carunchos atacaram um saco de farinha. Ficou imprestável para o uso em casa. Dei para Cecília brincar. Depois de um tempo ouço: Uhhuuuuu, Uhhuuu, vem ela do fundo do quintal rindo, gargalhando toda coberta de farinha: mamãe! mamãe! a Tereza gosta de brincar de fantasma! Eu fiz um fantasma e ela fez fuuu para mim.
Ainda com a farinha: acho que poderia transformar as bolinhas de pelos em fantasmas... diz pensativa. Não, não, acho que eles serão piratas.



sábado, 23 de janeiro de 2016

Um mundo sem pressa.

Fui com a Cecília para Porto Alegre. Fomos de ônibus. Levei um celular antigo, de um tempo muito, muito distante em que o aparelho servia para falarmos com outras pessoas. Pois bem, ele não tira foto de qualidades, não tem acesso à internet, redes sociais, etc, etc, etc, e, a bateria dura uma semana (ficou claro o tempo que ele tem). Fomos ao Fórum Social Mundial, fomos à UFRGS, fomos à Praça da Alfandega e ao mercado Público, comemos salada-de-fruta com sorvete de creme, na banca 40. Olhamos as banquinhas de porcelanas e coisinhas antigas. Rimos, nos cansamos, andamos de ônibus, nos perdemos. Sem selfies. Sem fotos na verdade. Uma com a outra, sem pressa. Tudo registrado, como diria o Drummond, na retina de meus olhos cansados. Sim, olhos! Eu tenho muitas fotos, mas não preciso de fotos para tudo. Quero que a vida corra diante dos meus olhos, não da tela do celular. Tudo tem mais cor e poesia assim....

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Dos roubos

Fui roubada. Na entrada do 343 PUC-Agronomia.Ônibus que tem o itinerário que vai da Rodoviária de Porto Alegre até o Campus do Vale, da UFRGS, que fica na saída para Viamão, ou seja, muito longe do centro e muito, muito longe de Santa Maria. Cinco horas. Mas não percebi na hora. De fato, fui perceber ao tentar encontrar minha carteira na bolsa, para pagar o almoço no restaurante da universidade. A primeira reação foi o pânico, depois o desespero: pânico ao descobrir que tudo de minha vida civil havia sido roubado e desespero por não ter dinheiro para pagar sequer o almoço. Gentilmente, muito mesmo, a gerente do restaurante me cedeu um número de conta, para que eu pudesse depositar o dinheiro depois. Ela viu que eu estava transtornada. Depois do susto, veio uma onda de ansiedade: procurar na casinha de descanso dos motoristas e cobradores de ônibus, ligar para a garagem da empresa de ônibus e tentar descobrir se por um milagre minha carteira não havia ficado perdida no interior do ônibus, na vinda. Não. E  o último fio de esperança se vai.  Segundos nos separam do abismo total. Então, ligar para todos os bancos, cancelar cartões, avisar os familiares  - caso alguém ligue antes - sentir medo, muito medo. E pensar: como pude ser tão distraída? Mas eis então que percebo que um mecanismo bastante utilizado pelo Estado para mascarar a seu total descaso com a segurança: a vítima é que é culpada. Não, não sou. E me nego a assumir esse rótulo. Minha carteira estava dentro da minha bolsa, embaixo do meu braço, em um lugar público onde circulam milhares de pessoas e não havia nenhum policial, nem mesmo posto da polícia e eu, por não ser portadora de RG do Rio Grande do Sul, nem mesmo pude fazer a ocorrência online. Eu sou vítima. Os bandidos são outros: a pessoa que me roubou literalmente e o Estado que não nos protege, nunca. Sim, há ainda tanta generosidade no universo e nenhuma dela é do poder público: minha orientadora que pagou minha passagem de volta para casa, a Soraia do guichê de venda de passagens (da pior empresa que já conheci - a Veppo, da Rodoviária de Porto Alegre) que ignorou falta de quatro reais para completar o dinheiro da passagem, as funcionárias da secretaria da pós que gentilmente me emprestaram o telefone e me auxiliaram, a funcionária do restaurante...E ao entrar no ônibus eu pensava que poderia ter sido muito, mas muito pior: alguém com arma, violência física. Chorei muito, por imaginar meus documentos jogados em qualquer lixeira. E pensei que as formas de violência do capitalismo não têm limites: pobres roubando outros pobres, enquanto os ricos se refestelam em praias, iates (muitos mantidos as custas do dinheiro público), cercados de seguranças por todos os lados. Só me acalmei quando entrei em casa e vi os olhinhos da Cecília, ainda acorda, feliz da vida com minha chegada. Resignada, aceitei o senso comum: poderia ter sido ainda pior.

domingo, 3 de janeiro de 2016

Ano novo.

Quão previsível é começar um texto nos primeiros dias de janeiro com tal título? Pois bem, previsibilidade é parte do jogo entre autores e leitores. Se há surpresa é porque o leitor se desatentou em algum momento. Eu sou a mais crente das leitoras. Sempre há surpresa. Pois bem. Não fiz promessas. Não fiz listas. Não estabeleci metas: mas quero ver a Cecília crescer. Publicar e escrever a tese.  Cuidar do jardim. Andar mais de bicicleta. Ler os livros da minha pilha imaginária que se acumulam desde a graduação. Dirigir menos. Viver, respirar sem pressa e tentar dormir mais duas horas por noite. Pois bem. Tornou-se uma lista. Coisa inapropriada de rever a gente pelo lado do avesso é que sempre enumeramos, para o bem o para o mal, um  monte de aflições que estão ali, na espreita, esperando uma virada de ano, um aniversário, para voltarem, aparecem. Não quero aflições, por isso também, os ditos enumerados não são resoluções. Quero a previsibilidade. Um ano sem surpresa, onde eu consiga reparar os sinais e me preparar. Quando era pequena e morava em Luiziana, sempre sabia de onde vinham as nuvens das piores chuvas. Com tantas mudanças feitas, demoro para perceber. Então, para 2016 quero, de novo, saber de onde ficam as nuvens com as piores tormentas. Não, elas não deixarão de vir.  Mas poderei fechar a casa, recolher as roupas e os gatos. E poderei escolher se sinto medo ou alívio em sabê-las

My heavy heart

  My heavy heart A canção do Coldplay toca no rádio do carro. Your heavy heart é feito de pedra. Você não precisa ser sozinha....voltando ...