segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Chuva

Escrevo.É meu trabalho em tempo integral nos últimos dois anos. Na janela a chuva cai torrencialmente. Sempre tive uma intimidade ancestral com a chuva: antes, quando menina, medo, agora, calma. Volto-me para meu pequeno caos interior, lembro-me lentamente de assuntos e pessoas, divago enquanto ouço retumbar nos objetos do quintal, as grossas gotas de chuva. Se tivesse lágrimas choraria. Mas não tenho. O que há é esse silêncio de casa vazia. Leio um autor russo que fala da significação e da vida. Quais os significados da chuva? Por que algumas palavras brotam em meu interior com tanta força? Qual a história delas? Por que ando eu a fazer tantas perguntas? Deve ser a chuva. Olho novamente para a janela, o escuro do temporal ainda toma conta da manhã. Escrevo. É meu trabalho e há nisso tanta solidão.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Ônibus

A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento. Marquei a página de O livro do riso e do esquecimento, do Kundera e concentrei-me na paisagem que corria pela janela do ônibus. Faz um tempo que ando de ônibus com livros em minhas bolsas. Lê-los é fugir um pouco do sufocamento das pessoas que empoleiram-se nos coletivos, daqueles rostos sofridos e cheios de desesperança. Olho para os morros que margeiam a cidade: a luminosidade solar me faz lembrar o tempo em que morava perto do mar. Queria o mar, não por ter com ele relação idílica, apenas para ver sumir naquela imensidão horizontal todas as minhas pequenas-burguesas angústias. Sinto-me contista nos ônibus. As palavras que estão tão técnicas em  meu dia-a-dia, de repente ganham outro contorno e vão tecendo outras de mim. Vejo-me desfilar em diálogos mudos com pessoas que não são. Sou bruscamente retirada de minhas profundezas por um comentário do passageiro ao meu  lado. Foi para mim?  Para si próprio? Importa? A sineta da parada, o empurra-empurra, sinto-me exausta e volto-me para Kundera. Sobrou o chapéu de Clementis. Todas as lembranças que temos e que nos são inadequadas cabem na metáfora do chapéu de Clementis. Todo o dia de ontem. Todas as respostas mentirosas. Todo o amor foi tirado da fotografia, sobrou apenas o chapéu. E eu luto contra ele também. No ônibus. Sendo outra mulher. Uma versão melhor, menos iludida.

My heavy heart

  My heavy heart A canção do Coldplay toca no rádio do carro. Your heavy heart é feito de pedra. Você não precisa ser sozinha....voltando ...