sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Ônibus

A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento. Marquei a página de O livro do riso e do esquecimento, do Kundera e concentrei-me na paisagem que corria pela janela do ônibus. Faz um tempo que ando de ônibus com livros em minhas bolsas. Lê-los é fugir um pouco do sufocamento das pessoas que empoleiram-se nos coletivos, daqueles rostos sofridos e cheios de desesperança. Olho para os morros que margeiam a cidade: a luminosidade solar me faz lembrar o tempo em que morava perto do mar. Queria o mar, não por ter com ele relação idílica, apenas para ver sumir naquela imensidão horizontal todas as minhas pequenas-burguesas angústias. Sinto-me contista nos ônibus. As palavras que estão tão técnicas em  meu dia-a-dia, de repente ganham outro contorno e vão tecendo outras de mim. Vejo-me desfilar em diálogos mudos com pessoas que não são. Sou bruscamente retirada de minhas profundezas por um comentário do passageiro ao meu  lado. Foi para mim?  Para si próprio? Importa? A sineta da parada, o empurra-empurra, sinto-me exausta e volto-me para Kundera. Sobrou o chapéu de Clementis. Todas as lembranças que temos e que nos são inadequadas cabem na metáfora do chapéu de Clementis. Todo o dia de ontem. Todas as respostas mentirosas. Todo o amor foi tirado da fotografia, sobrou apenas o chapéu. E eu luto contra ele também. No ônibus. Sendo outra mulher. Uma versão melhor, menos iludida.

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