Quem leu Saramago sabe que a mágica das palavras não está
(aliás, nunca esteve – embora esperneiem os estruturalistas e formalistas por
causa disso) na construção do texto. Está na ponte que ele nos lança e faz com
que lancemos para um lugar dentro de nós. A nossa memória é ardilosa e a
seleção do que é guardado é um tecido de incoerência e contradição, mas, ah,
quanta poesia cabe nesses filminhos que montamos sobre nossa existência. E o
Saramago faz isso com as palavras. Ele une as palavras aos nossos filmes de
vida. Pois bem, eu li a Bagagem do Viajante ainda na graduação. Penso inclusive
ter feito algum trabalho de alguma disciplina com a crônica do Crime da
Pistola. Mas, o que melhor define esse livro é o texto E também naqueles dias. Quanta
coisa minha coube nessa crônica! Quantas sensações de outros tempos, do sítio,
das coisas da roça. Perdoe-se a quem
nasceu no campo, e dele foi levado cedo, esta insistente chamada que vem de
longe e traz no seu silencioso apelo uma aura, uma coroa de sons, de luzes, de
cheiros miraculosamente conservados intactos. O mito do paraíso perdido é o da
infância - não há outro. O mais são realidades a conquistar, sonhadas no
presente, guardadas no futuro inalcançável. E sem elas não sei o que faríamos hoje.
Eu não o sei
Uma identificação imediata com o menino. A gente cresce e
vira viajante e sai pelo mundo em andanças e ciganias. E coisas vão deixando de
caber nas nossas mudanças. Há saudades e a saudade é justamente esse lugar no
mundo que nos faz pertencer a uma memória, aos sujeitos das nossas memórias, a querer,
poeticamente, nossos lugares e nossas pessoas mais perto. E as distâncias que
tanto nos incomodam, acabam quase sempre num abraço. Não há para isso ainda
tecnologia. Para a poesia do reencontro: com os outros e com as nossas
realidades a conquistar.